sábado, 25 de abril de 2009

As Portas Que Abril Abriu

Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
(...)
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
(...)
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.
Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
(...)
Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
(...)
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
(...)
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.
(...)
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.
(...)
Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
(...)
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
Lisboa, Julho-Agosto de 1975
Ary dos Santos
(Ana Cotinhas)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Canção de Leonoreta

Borboleta, borboleta,
flor do ar,
onde vais, que me não levas?
Onde vais tu, Leonoreta?

Vou ao rio, e tenho pressa,
não te ponhas no caminho.
Vou ver o jacarandá,
que já deve estar florido.

Leonoreta, Leonoreta,
que me não levas contigo.

Eugénio de Andrade

(Ana Cortinhas)

domingo, 12 de abril de 2009

A flor seca

Vai, flor gentil, vai, prenda suspirada,
doce mimo d´amor terno e fagueiro,
vai, que ele mesmo grato e prazenteiro,
ele te há-de levar à minha amada.

Cumpre o que ela te impôs, que é lei sagrada:
se mudada te achar, sem cor, sem cheiro,
se o viço, a gala do verdor primeiro
em tuas pálidas folhas vir crestada,

diz-lhe que mais que a ti, mais me queimara
o intenso ardor daquela saudade
que a ambos neste estado nos deixara.

Oh! se um benigno influxo de piedade
de seus formosos olhos te orvalhara...
Qual de nós ambos reviver não há-de?

Almeida Garrett

(Luís Neves)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Fui Sabendo de Mim

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia


pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia


Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

(Filipa)

As Rosas

Rosas que desabrochais,
Como os primeiros amores,
Aos suaves resplendores
Matinais;

Em vão ostentais, em vão,
A vossa graça suprema;
De pouco vale; é o diadema
Da ilusão.

Em vão encheis de aroma o ar da tarde;
Em vão abris o seio úmido e fresco
Do sol nascente aos beijos amorosos;
Em vão ornais a fronte à meiga virgem;
Em vão, como penhor de puro afeto,
Como um elo das almas,
Passais do seio amante ao seio amante;
Lá bate a hora infausta
Em que é força morrer; as folhas lindas
Perdem o viço da manhã primeira,
As graças e o perfume.
Rosas que sois então? – Restos perdidos,
Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha
Brisa do inverno ou mão indiferente.
Tal é o vosso destino,
Ó filhas da natureza;
Em que vos pese à beleza,
Pereceis;
Mas, não... Se a mão de um poeta
Vos cultiva agora, ó rosas,
Mais vivas, mais jubilosas,
Floresceis.
Machado de Assis, in Crisálidas
(Filipa)