segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Ambição

Quebra a harmonia inútil dos teus sonhos
E vibra no calor da natureza;
No rubro colorido dos medronhos,
Ou no cantar das águas da represa!

Fecunda a seiva quente das raízes;
Aloira o pão adulto e já vergado;
Entorna luz em fúlgidos matizes
No pôr do Sol distante e torturado!

Doira o cântico alegre dos ceifeiros
E sê o golpe rude das enxadas;
Canta no mar de encantados feiticeiros
As espumas revoltas e esgarçadas!

Sê veio de água no calor da estrada
E frescura nas tardes inclementes;
E sê a liberdade encarcerada
Do perfume, na carne das sementes!

E no diamante límpido do orvalho
Ou na visão extática das fontes,
Sê grande e forte, tronco de carvalho
A dominar paisagens e horizontes.

Abrindo as asas, sobe, devagar,
Num voo sem igual, quente e profundo,
Mais para além das convulsões do mar,
Ou das planícies côncavas do mundo.

E sê também a noite silenciosa
Depois as ametistas do poente;
E dá mais cor às pétalas da rosa,
Quando falam à lua, docemente.

Até ao pôr do Sol do novo dia,
Sem renúncia, nem mágoa nem chorar,
Entorna o mel doirado da alegria
Na milagrosa graça do pomar.

E na volúpia duma hora incalma,
Tendo no sangue lava a crepitar,

Faz nascer de ti mesmo uma outra alma,
Que uma alma só é pouco p'ra cantar!

Ary dos Santos

(Ana Cortinhas)

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